sexta-feira, 13 de maio de 2011

Aprisionada

         Fazia aproximadamente seis meses que meu filho havia morrido, culpa de um trágico acidente. Confesso que passei por uma terrível depressão, foram momentos bem difíceis, até me afastaram do trabalho. Uma enfermeira depressiva pode ser bem perigosa, eles afirmavam.
          Mas enfim consegui dar a volta por cima, e cá estou eu, de volta ao trabalho. Fui transferida para a ala psiquiátrica. Nossa, é triste ver todas aquelas pessoas “viverem” em um mundo que não existe. Mas é bom poder ajudá-las, mesmo sabendo que seria melhor se elas não precisassem de ajuda.
          Relacionar-se com pessoas insanas pode ser bem perigoso, na primeira semana de trabalho duas enfermeiras foram agredidas. É um trabalho duro, mas que deve ser feito, pois aquelas pessoas precisam de ajuda, e não podem ser soltas no mundo. Há até um no hospital que está internado lá por matar toda a família, mas esse as enfermeiras não podem nem chegar perto, ele é uma “bomba-relógio”, que fica na ala de segurança máxima.
         Dizer que minha vida voltou ao normal seria mentira. Ainda sinto muito a perda do meu filho, mas a vida deve continuar, pelo menos isso espero. Estou tentando fazer a vida nova dar certo, manter uma rotina, regras, tentar viver “normalmente”, embora dentro de um hospício oito horas por dia.
          Num belo dia, chegando ao hospital psiquiátrico onde trabalho, vi alguns carros da polícia parados em frente, e uma ambulância que não pertencem àquele hospital. Fiquei preocupada, me aproximei e ouvi o que havia acontecido, parece que alguém matou um dos internos, mas ainda não se sabe quem e nem o porquê.
          As suspeitas caíram sobre o interno que assassinou a família, o levaram para interrogá-lo.
          Mesmo tendo acontecido uma tragédia, não tivemos folga, pior, tivemos mais trabalho. Tentar acalmar loucos eufóricos e assustados não é nada fácil. E a sujeira no quarto da vítima... Nossa, pobre Sr. Lopes, em pensar que eu fui a última pessoa a vê-lo vivo e sorridente. Parece que seus olhos foram arrancados. Eram belos olhos, azuis, o que me fez lembrar meu filho, que também tinha lindos olhos azuis.
          Os dias foram passando, e o louco que havia matado a sua família ainda não havia sido liberado pela polícia, que acreditava fielmente que ele era o assassino do hospício. Mas como as provas não apareceram, ele foi liberado, e voltou para o sua “cela”.
          Isso aconteceu na mesma semana que uma nova interna chegou, era uma mulher que sofria de depressão, poucos dados sobre ela me foram revelados, ela pertencia à outra ala, ficava na mesma que o assassino. Não entendia o porquê que ela era considerada tão perigosa.
          As investigações sobre o recente assassinato continuavam, e a nova interna parecia agir de uma maneira mais estranha à medida que as investigações avançavam pouco a pouco. Eu não via uma relação entre os dois fatos, mas me parecia um tanto quanto estranho.
          Passei a observá-la, tentar entender suas obsessões, mas ela era muito fechada, parecia viver num mundo apenas dela, presa em si mesma.
          Acho que a presença da polícia no hospício não ajudava muito, nos trazia um ar de segurança, mas instigava uma coisa ruim nos internos. Eles pareciam ficar bem assustados com a presença dos oficiais. O que tornava meu trabalho bem mais complicado. Pedi então para minha chefe contratar uma nova enfermeira, ou auxiliar, que já seria de uma grande ajuda.
          A nova enfermeira era bem bonita, bem alva dos cabelos castanhos, parecia uma boneca de porcelana. Como ela era nova ali, deixei que ficasse no meu lugar, e pedi transferência para ala de segurança máxima. Desse modo poderia ver como andavam as investigações e ainda observar os hábitos da nova interna, que tanto me chamou atenção, mesmo não sabendo o porquê.
          Meses passaram e nada do caso ser resolvido, dificilmente havia a presença de policiais no hospício agora. Mas mesmo assim, a situação parecia bem mais sobre controle assim.
          Numa das noites que se seguiram, ouvi um grito vindo da ala de segurança máxima, todos os funcionários correram para ver o que havia acontecido. Os gritos continuavam, e aumentavam a mediada que chegávamos perto do quarto da nova interna, agora não mais tão nova assim, pois ela já estava aqui há alguns meses.
          De repente os gritos pararam, não sabíamos se era uma boa ou má notícia, mas continuamos correndo, e invadimos o quarto da interna. Ela estava banhada em sangue, com uma faca na mão, e a nova enfermeira, a “bonequinha de porcelana”, estava estirada no chão, sem o escalpo, havia sangue para tudo que era lado, uma cena horrível... Eu desmaiei.
          Acordei aqui nessa sala, senhor Delegado, ainda não sei muito bem o que aconteceu, mas espero que vocês tenham prendido tal mulher.
          Depois que disse tudo aquilo, vi a nova interna entrar na sala, que parecia ser uma sala de interrogatórios, ela estava com a roupa toda suja de sangue e com uma faca na mão.
          - Cuidado, Delegado. Atrás do senhor!!!
          - Já chega dessa história, moça. – Disse o delegado. – Entendo que você passou por um trauma, mas isso não justifica os seus crimes, nenhum deles.
          - Cuidado! Ela vai lhe matar!!
          - Já chega, Dona!- Exclamou o delegado. - Não existe essa tal “nova interna”, na verdade a nova interna é você. E farei de tudo para lhe trancafiar para sempre.
          Olhei para frente e vi a imagem da “nova interna” sumir, reparei nas minhas roupas e vi que elas estavam sujas de sangue, fui aos poucos tomando consciência do que eu havia feito. Eu não superei a depressão, e nem superaria, pois a morte de meu filho não foi um acidente, eu o matei. Confundi-me comigo mesma, e depois de pensar um pouco, levantei a cabeça e disse:
          - Certo, senhor Delegado, tente me prender, alegarão insanidade, como já foi feito antes, no máximo voltarei para o hospício de onde saí, e você não poderá me deter por lá.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Uma Noite em Saturnália.

          Já era uma hora da madrugada quando resolvi ir me aventurar pela cidade. Peguei minha moto e saí de bar em bar, experimentando toda sorte de prazeres.
          Misturar bebidas não é uma boa ideia, e em menos de duas horas eu já estava completamente bêbado, não lembrava nem o nome de minha própria mãe. A cada copo de whisky eu ficava mais lascivo. Decidi então ir ao novo bordel-cassino da cidade, “Saturnália, o festival dos prazeres”.
          Para fechar a conta no bar onde eu estava pedi a saideira, uma dose de tequila. Paguei por tudo e virei o copo, de uma vez só, arremessando-o para trás após beber todo o seu conteúdo. Já ia saindo quando percebi que uma briga havia começado, para minha sorte eu já estava indo embora.
          Fui caminhando, cambaleando na verdade, e cantarolando músicas que ouvia quando criança, em direção à minha moto. Coloquei o capacete, ao menos isso lembrei, e subi na moto. Estava decidido a ir ao bordel-casino Saturnália.
          Pessoas na situação em que eu me encontrava não devem dirigir, um acidente seria inevitável. Em poucos minutos após sair do bar, bati de frente com um carro grande, a última coisa que me lembro de ter visto antes de apagar foi aquele carro grande, com luzes vermelhas ofuscantes e uma sirene estridente, perder o controle.
          O mais estranho foi, que após desmaiar, meio que instantaneamente após (pelo menos foi isso que me pareceu), acordei em uma sala, com paredes vermelhas. Havia mais três pessoas naquela sala, comecei a pensar que tudo não havia passado de um sonho. Examinei a sala com mais atenção e percebi que os três homens estavam lá sentados à mesa, jogando poker, um deles era o Croupier, e atrás dele havia um grande relógio de pêndulo parado às três horas.
          - Vejam quem acordou. – Disse o Croupier. – Estávamos esperando-lhe para começarmos o jogo.
          -Que jogo? –Eu perguntei. – Quem são vocês? Onde estamos?
          - Calma, rapaz, sente-se aqui conosco. Você está em Saturnália.
           - Eu não me lembro de ter chegado a Saturanália.
          - Claro que não se lembra, tivemos que lhe aplicar glicose quando você chegou aqui. – Disse o Croupier. – Mas fique tranqüilo, apenas sente-se e divirta-se, afinal você está em Saturnália.
          Fiquei cabreiro com aquela situação, porém eu tinha consciência de que exagerei na bebida, e poderia haver a possibilidade de eu ter chegado a Saturnália e não me lembrar disso.
          Peguei minha carteira e vi que nada lhe faltava, comprei algumas fichas e me sentei à mesa. Já que estava ali iria pelo menos aproveitar a ocasião.
          Comecei a estudar os outros jogadores, eles eram bem distintos um do outro. Um deles era um motoqueiro bem estereotipado, jaqueta de couro, camiseta do Motorhead, bandana, etc. O outro parecia ser um sujeito mais normal, porém uma única coisa muito lhe chamava atenção, o uniforme de paramédico.
          Conforme as mãos iam se desenrolando, o Croupier começava a ganhar mais intimidade comigo e com os outros jogadores. Aos poucos ele ia contando histórias sobre nossas vidas, o mais impressionante é que ele realmente conhecia algo sobre nós. Era como se nos conhecesse.
          - Esta última história que contarei sobre você pode deixá-los assustados e confusos, porém contarei assim mesmo. –Disse o Croupier apontando para o motoqueiro. – A madrugada estava normal para você, beber e jogar sinuca com seus amigos no bar de sempre era sagrado. Porém vocês não contavam com a chegada de um homem, que nunca havia ido lá antes, ele parecia ser um cara comum, porém estava exagerando na bebida. Talvez o seu maior erro tenha sido não prestar atenção naquele sujeito, que perdia cada vez mais o controle a cada copo de whiskey. Você continuou jogando sua partida de sinuca até ver um copo de vidro voando, e o virar-se para ver quem o havia arremessado, sentiu uma forte pancada na nuca. Diga-me se eu estiver mentindo, mas a última coisa que você lembra ter visto, antes de acordar nesta sala, foi um cara enfiando uma faca no seu estômago.
          O semblante do motoqueiro mudou drasticamente, na mesma hora ele ficou em silêncio, cabisbaixo, estava nitidamente confuso, até levantou a blusa em busca de uma marca de facada.
          O jogo continuava, porém aquelas palavras haviam desconcentrado o motoqueiro, e concentração é essencial em uma partida de poker. Em poucos minutos ele perdeu todas as suas fichas, e teve que abandonar a sala vermelha.
          Virando-se desta vez para o paramédico, o Croupier disse:
          - E você, meu rapaz. Quem diria que uma madrugada tranqüila de trabalho pudesse ter sido tão desastrosa? Digo isso, pois seu trabalho não costuma envolver seus acidentes, não é mesmo? Antes você tivesse realmente pedido para outro (como você pensou em pedir) ir atender aquela última ocorrência: “Briga em um bar, homem branco, trinta e poucos anos, ferimento à faca”.  Mas era o seu trabalho ir até lá socorrê-lo, o trabalho que tanto lhe orgulha. Ligou a sirene e saiu com sua ambulância pelas ruas da cidade, a caminha do tal local da ocorrência. Você só não esperava que um motorista bêbado batesse de frente com sua ambulância, fazendo com que você perdesse o controle da mesma e se chocasse de frente com um poste. E depois de tudo isso aqui está você, sem entender muito bem o que ocorreu. E quem pagou por tudo isso foi aquele pobre homem que havia sido esfaqueado, que morreu por falta de socorro.
          A culpa ia corroendo o paramédico, por mais que a culpa não fosse dele, mas aquelas palavras do Croupier foram muito fortes. Aos poucos ele ia tendo o mesmo fim do motoqueiro, a perda de todas as fichas, e teve que sair da sala vermelha.
          Eu já estava juntando minhas fichas e me levantando para sair da sala quando o Croupier disse:
          - Aonde você pensa que vai?
          -Trocar as fichas que eu ganhei por dinheiro e ir para casa.
         -Ha! Ha! Ha! Onde você pensa que está? – Perguntou o Croupier, rindo muito.
         -Ora “onde”, em Saturnália, foi você mesmo quem disse.
         O Croupier pegou o baralho e começou a embaralhar as cartas enquanto dizia:
         - Deixe que eu lhe conte uma história. Existem certas ocasiões em que a alma de uma pessoa deixa seu corpo, e fica presa entre a Terra e o Céu, ou Inferno...
         - Do que diabos você está falado? - Eu interrompi.
         -Deixe-me terminar. Como eu ia dizendo, quando isto acontece, geralmente, eu, Lúcifer, as levo para um lugar e tento-as. Este lugar é conhecido por vocês, humanos, como Inferno.
         Comecei a achar que aquele sujeito era doido, só podia ser, o cara achava que era o diabo e que estava no inferno. Levantei-me e fui em direção a porta, nem mesmo peguei as fichas que eu havia ganhado, apenas saí. Para meu espanto, ao abrir a porta e por ela passar, havia novamente entrado na sala, da qual eu acabara de sair; parecia não haver um modo de sair de lá.
         - Agora você irá me ouvir? – Perguntou o Croupier sorrindo.
         Sentei-me novamente à mesa, mas desta vez, bem amedrontado.
        - Agora estamos nos entendendo. Pois bem, dizia eu que uma alma pode sair de seu corpo, e isto acontece mais facilmente quando a pessoa está morrendo, para ser sincero com você, neste exato momento duas pessoas já morreram e você está sendo reanimado em um hospital, ou pelo menos estão tentando lhe reanimar, tudo por culpa de seu ato totalmente irresponsável.
         Após ouvir isso, as coisas foram começando a se encaixar; o copo de vidro voando, a briga no bar, o carro grande com sirene... Era tudo culpa minha. Estava perplexo.
         Ao terminar de embaralhar as cartas, o Croupier falou:
         - Bem, eis a última mão, o real motivo de eu ter lhe trazido aqui. Apenas eu e você. Se você ganhar, deixarei que volte para seu corpo, se tiver sorte ainda poderá viver por muito tempo. Mas se você perder... Bem, se você perder sua alma será minha, sendo assim, não morrerá hoje, voltará para o seu corpo, continuará normalmente sua vida e quando morrer virá de volta para cá, o Inferno.
         Estava tão desanimado com o que eu acabara de ter feito que nem mesmo dei importância para tal situação, já não tinha mais nada para perder. Deixei que o jogo começasse. A partida foi se desenrolando, floop, turn, e por fim, o river, porém antes que ele fosse aberto na mesa, acordei em um leito de hospital, todo enfaixado, deitado de frente para um grande relógio de pêndulo que marcava às três horas.
           Foi tudo um sonho, pensava eu, ou pelo menos desejava que tivesse sido, pois a dúvida sobre quem havia vencido a última mão corroia minha alma... Literalmente.

Pássaros.

     Já era tarde da noite quando ouvi algo semelhante a um bater de asas, próximo a minha janela. Não liguei muito para isso, apenas continuei deitado pensando em como foi deprimente o meu dia.
     Aquele bater de asas continuava, ficava cada vez mais forte, me levantei e fui abrir a janela para saber o que lá fora havia. Porém eu nada achei. Tudo que vi foi minha triste vizinhança.
     Deitei-me de novo, e de novo o bater de asas apareceu, mas dessa vez, junto com batidas na minha janela, o som assemelhava-se a bicadas. “Não era possível!” eu exclamei. Em pleno vigésimo andar um pássaro que não tem o que fazer veio me tirar o sono?
     Levantei de um pulo e abri a janela ferozmente gritando “Saia, sua ave maldita!” Porém nada lá havia. E novamente, cada vez mais o barulho aumentava. Perdi a noite inteira de sono.
     Fui trabalhar cansado e irritado, a ponto de explodir. Entrei no meu escritório e comecei o que eu tinha que fazer, porém aquele bater de asas me perseguiu até lá, e junto dele, as bicadas na janela.
     A tensão só ia aumentando, os tic-tacs do relógio iam me consumindo, todo aquele barulho infernal, e apenas eu parecia ouvir. As pessoas ao meu redor ou não se incomodavam com o barulho ou não o ouviam... ”Por que eu?“ Eu me perguntava.
     Enfim, a dolorosa jornada de oito horas de sofrimento dentro do meu escritório acabou, fui pegar meu carro no estacionamento e peguei o caminho de volta para casa. Já na estrada, comecei a ouvir um som, como se alguém estivesse me seguindo, mas não de carro ou moto, mas sim voando, o bater de asas estava de volta. Não sei por qual motivo, mas ele me perseguia.
     Ao chegar em casa fui tomar um banho para tentar esfriar a cabeça, eu só precisa dormir, ou pelo menos era isso que eu pensava. Tomei um calmante e me deitei. Logo dormi, e até sonhei. Achei que meu problema estava resolvido, era apenas falta de sono. Levantei disposto de manhã e fui preparar um café, quando ouvi: “Pic... pic... pic...”
     Parecia ter algo bicando o interior do meu armário, corri para abrir o mais rápido que pude, para tentar ver o que causava tal barulho, porém tudo que encontrei foram xícaras, e nada mais. A teoria da falta de sono já não estava mais funcionando.
     Liguei para o meu chefe e pedi uns dias de folga; fui até uma psicóloga e contei-a tudo que estava acontecendo comigo. ”Você só precisa dormir.” Ela dizia. Eu discordava sempre que ela dizia disso, pois acabara de ter uma excelente noite de sono. Mas ela insistia, até me receitou alguns calmantes.
     Voltei para casa. Novamente tomei um banho e depois um calmante. Deitei-me e dormi como um anjo. Acordei outra vez disposto, porém, o bater de asas que tanto ouvia, junto com as bicadas na janela, não voltaram sozinhos. Comecei a ouvir, vindos do meu banheiro, uns grunhidos estridentes.
     Já estava ficando insuportável, digo, já havia ficado há muito tempo. Agora estava pior que insuportável.
     Não conseguia mais agüentar, aquele barulho só poderia ter vindo das profundezas do inferno, sendo enviado pelo próprio Hades.
     Os grunhidos e as bicadas iam aumentando exponencialmente, o que antes parecia ser o barulho de apenas um pássaro havia se tornado o barulho de um bando. E as bicadas, antes nas janelas, agora eram dentro da minha cabeça.
     Eu precisava de ajuda, seja qual fosse, médica, espiritual, etc. Eu só queria livrar-me daquele horror, que tanto me afligia.
     Fui à igreja, ao hospital, e nada. Nada resolvia meu problema, aparentemente, não existia um problema. Para onde eu fosse aqueles “pássaros invisíveis e infernais” me perseguiam.
     Voltei para minha casa, tomei um banho e um calmante. Porém dessa vez o barulho das bicadas na janela não me deixaram dormir. Levantei e fechei a cortina. Mas ele só aumentava. Já sem paciência, sem nervos, sem ânimo para viver, me desesperei, e gritando “saiam daqui, seus pássaros infernais” me atirei pela janela, pensando eu que o barulho do vidro sendo quebrado fosse afastá-los...
     Foi então que, durante a queda ouvi: “TRIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMMM.”
     Era o meu despertador me acordando. Nada daquilo passou de um sonho, eu pensei contente. Levantei-me mais disposto do que nunca e fui até a cozinha preparar um café, quando ouvi um barulho vindo de dentro do meu armário: “Pic... pic... pic... pic...”

A Estranha Poção do Dr. Litz.

     Faziam poucos meses que eu havia me mudado para minha nova casa. Ela era enorme e assustadora, fonte de diversas histórias de horror, deve ser pelo fato de o antigo dono ter sido um solitário cientista, Dr. Hanz Litz, era o seu nome.
     O Dr. Litz havia montado na casa uma enorme biblioteca, mas ela era tão antiga que fedia a mofo, e praticamente ninguém conseguia passar muito tempo lá dentro.
     Ouvi diversas histórias tenebrosas sobre a casa e seu ex dono, a mais famosa era que dentro dela havia um laboratório secreto, onde o Dr. Litz fazia experiências macabras com cadáveres. Que besteira! Eu pensava. Mas até achava interessante morar na casa que pertenceu ao “Dr. Frankenstein”. As crianças não chegavam nem perto da casa, e os vizinhos não me importunavam.
     Certo dia, caminhado pelos inúmeros cômodos da casa, encontrei o diário pessoal do Dr. Litz. Comecei a ler (não seria falta de educação, ela já estava morto mesmo), nossa... como aquele cara era sádico! Estavam escritos lá todos os detalhes de todas as experiências sórdidas que ele fazia. Tudo registrado, o horror escrito.
     A questão agora era: Aqueles relatos eram reais ou apenas delírios daquela mente louca e depravada?
     Passei a investigar sobre a vida do Dr. Litz, e tentar entender o que se passava pela sua cabeça. O primeiro passo era encontrar o laboratório. Comecei pelos clichês de casas antigas com compartimentos secretos: Lareira, Porão, livros falsos na biblioteca empoeirada. Mas não encontrei nada. Resolvi dar uma volta pelo resto da propriedade, no terreno havia uma capela e um pequeno cemitério familiar, porém a única sepultura ainda fechada era a do Dr. Litz, as outras estavam abertas. Alguém deve ter transferido os corpos para outro lugar.
     Ao entrar na capela vi uma enorme cruz atrás do altar, ela deveria ser grande o suficiente para crucificar alguém. Aproximei-me dela e vi jogado ao seu “pé” dois cravos. Nos “braços” da cruz havia dois buracos, um em cada extremidade, como se alguém já tivesse sido pregado lá.
     Não pensei duas vezes, pus os cravos nos buracos que havia na cruz. Depois de ter feito isso, um alçapão se abriu por detrás do altar, o dia já estava acabando, mas mesmo com a pouca iluminação ambiente, dava para ver uma escada ali. Resolvi voltar para casa e esperar o Sol nascer para voltar ali.
     Fiquei tão ansioso, queria logo saber o que havia debaixo daquela capela. Nem dormi, passei a noite inteira lendo o diário do Dr. Litz. Aquilo que antes me parecia louco e depravado começava a me parecer inteligente e interessante.
     Ao amanhecer fui direto para a antiga capela, chegando lá desci pela abertura por de trás do altar. Fiquei pasmo, havia encontrado o laboratório secreto do Dr. Hanz Litz.
     Comecei a fuçar as coisas lá deixadas, e encontrei um livro, parecia uma ata ou coisa do tipo, nele havia registrado todas as experiências que o Dr. Litz havia feito. Ficava cada vez mais interessado no trabalho dele. Aquele homem, quem eu primeiro chamei de louco e depravado, havia se tornado, para mim, uma espécie de inspiração.
     Passei meses dentro da biblioteca estudando, tópico por tópico, cada uma das mais obscuras e ocultas ciências. Havia me tornado uma espécie de substituto do Dr.Litz, o maior fã dele, para ser sincero, o único fã.
     Continuei minha pesquisa lendo livros e o diário que havia achado. Em um dia de estudo, li um relato que me deixou encafifado: ”Eis minha obra-prima! Meus parentes, que outrora estavam enterrados no cemitério da família, agora caminham entre os vivos.”
     Teria o Dr. Litz conseguido reviver os mortos? Eu me perguntava. Olhei a data em que ele escreveu aquilo e procurei no livro de anotações, que havia achado no laboratório, o que ele fez naquele dia.
     Estava escrito lá que o Doutor havia conseguido fazer certa poção, ela a chamava de Reanimadora, que era capaz de reviver os mortos. ”Porém, os reanimados têm gostos peculiares, que assombrariam qualquer ser humano normal”. Disse o Dr. Litz em seus relatos.
     Fiquei muito empolgado com a tal Reanimadora, passei a tentar fazê-la, com ajuda dos relatos do Dr. Litz. Para minha sorte, ele deixou anotada a fórmula.
     Depois de meses de trabalho árduo consegui, enfim, fazer um pouco de Reanimadora. Fiquei tão excitado, agora só me faltava um cadáver. Mas onde eu acharia um sem levantar suspeitas?
     Tinha feito a parte mais difícil e não pararia nela. Arrumaria de qualquer forma um cadáver. Saí do laboratório, e, ao chegar ao cemitério, lembrei que o Dr. Litz estava ali enterrado. Nada seria mais justo do que usar sua invenção para revivê-lo.
     Desenterrei-o e o levei para o laboratório. Seguindo as instruções do próprio Dr. Litz, escritas em suas anotações, injetei cem mililitros de Reanimadora na sua espinha.
     Depois de ter feito isso, sentei-me e fiquei lendo as anotações do Doutor. Enquanto ele era reanimado, seu corpo ficava fazendo uns movimentos confusos e aleatórios, uns espasmos assustadores, porém animadores. Continuei lendo e deixei a magia da Reanimadora acontecer.
     Enquanto eu estava lendo, o Dr. Litz voltou à vida, e sem eu perceber veio caminhando na minha direção. Eu estava tão concentrado na leitura do último parágrafo que ele escreveu sobre as experiências com a Reanimadora que nem percebi que ele já estava “vivo”. Estava assim escrito: “Talvez este tenha sido meu maior erro, aqueles cadáveres reanimados não são como os realmente vivos, para ser mais preciso, os realmente vivos são o prato favorito dos reanimados. Eles voltam à vida, mas pagam o preço disso se transformando em canibais.”
     Voltei então minha atenção para o Dr. Litz, porém era tarde, ele já estava praticamente em cima de mim, cravando os seus dentes no meu pescoço...
     Reanimar o Dr. Litz foi o último e maior erro que eu cometi.


A Luz Nos Meus Olhos.

          Tudo estava normal na minha pacata vida, eu tinha uma linda esposa, um bom emprego, uma bela casa, tudo o que um homem sempre almeja ter.
          Acordava sempre mais cedo que minha mulher, preparava o café da manhã e em seguida checava meus emails, só depois acordava minha esposa para comermos juntos.
          Porém, em um belo dia, seguindo minha rotina diária, acordei mais cedo, preparei o café e fui checar meus emails, mas meu notebook estava descarregado, peguei então o de minha esposa, ela não iria se importar, eu pensei. Ao abri-lo vi uma mensagem na tela: ”Você deseja apagar esta mensagem?”
          Fiquei bastante curioso, mas sabia que olhar tal mensagem seria errado e inapropriado. Porém lembrei-me que na noite anterior, ao chegar em casa, vi minha mulher lendo algo em seu notebook, e quando ela me viu aproximando-se, deu um jeito de fechar tudo bem rápido. A curiosidade ia transformando-se em desconfiança.
          Não excluí a tal mensagem, li-a. Para minha surpresa, na verdade, decepção, descobri que minha adorável esposa tinha um caso extraconjugal.
          Excluí então a mensagem e deixei o notebook dela como ele estava, tomei um banho e fui trabalhar. Nem mesmo tomei café.
          Não conseguia parar de pensar naquilo, traição é a pior de todas as coisas ruins que o homem inventou. Tudo piorou quando eu recebi um telefonema da traidora. Aquela bastarda queria saber por que eu saí de casa sem me despedir. Logo ela, que era o próprio motivo.
          Os dias iam passando e meu ódio aumentando, mas não dizia nada à ela. Dificilmente falava com ela, nem mesmo olhava na cara dela mais. Para minha sorte, o meu trabalho me ocupava muito tempo, tempo que eu passava longe dela.
          Porém, fui liberado mais cedo um dia. Ao chegar em casa vi minha mulher conversando com alguém pelo telefone, mas ela deu logo um jeito de desligar, deveria estar falando com o outro, eu pensei, marcando um novo encontro.
          Passei por ela sem dizer uma palavra, fui direto para a cozinha, peguei uma faca e sem ela perceber, fui me aproximando. Ela estava olhando para o pôr-do-sol pela janela que dava para o quintal de minha casa. Eu estava disposto a matá-la.
          Quando fiquei exatamente atrás dela, levantei a faca para golpeá-la, a lâmina da faca refletiu para os meus olhos o brilho do sol, e fechando-os, cravei a faca em minha mulher.
          No mesmo instante senti um misto de prazer e remorso, porém o prazer era maior. Mas estaria mentindo se dissesse que ver minha mulher sangrando até a morte não me abalou, me abalou não por ter sido algo cruel, mas sim porque eu sabia que iriam sentir falta dela. Comecei a pensar em algo.
          A sensatez já havia ido embora faz tempo, limpei tudo elevei o corpo dela para o quintal. Comecei a cavar um buraco para enterrá-la.
          Já era quase manhã quando terminei, o buraco devia ter um metro e meio de altura por um metro e meio de largura e um metro e meio de comprimento.
          Após tê-la enterrado fui tomar um banho; Conforme minha cabeça ia esfriando eu ia tomando conta do que acabara de ter feito, mas mesmo assim o remorso não superava o prazer naquilo ter feito. Continuei minha vida normalmente, preparei o café e fui checar meus emails.
          A caminho do trabalho passei por uma loja que vende mudas de árvores, lembrei que o terreno do quintal havia ficado um tanto quanto suspeito e decidi comprar alguma planta para plantar no lugar onde enterrei o corpo.
          Com um sorriso demoníaco no rosto lembrei-me que minha esposa sempre quis ter uma roseira, de rosas vermelhas, no nosso quintal, por que não dar uma para ela agora? Eu pensei.
          Entrei na loja e pedi uma roseira vermelha, porém só havia roseiras brancas no momento. Comprei assim mesmo, contrariando minha mulher até depois de morta. Meu prazer só aumentava.
          Saindo da loja, fui caminhando na direção do meu carro, até que em um determinado instante, o vidro espelhado do carro, que minha mulher tanto insistiu para que eu colocasse, refletiu a luz do sol para meus olhos. Fiquei um pouco desnorteado na hora, parado com os olhos fechados, mas coisa de um segundo, dois no máximo.
          Quando abri os olhos, vi estirado no chão o corpo de minha mulher. Fechei novamente os olhos e os esfreguei, ao abri-los de novo vi que nada havia à minha frente, exceto meu carro, claro.
          Voltei para casa com a muda de roseira. Liguei para meu patrão e avisei-o que não iria poder trabalhar. Levei a roseira para o quintal e a plantei no lugar onde havia enterrado minha mulher. Coloquei uma cerca de madeira em volta dela e fui descansar um pouco.
          Fiquei pensando em uma história convincente para contar sobre o sumiço de minha mulher. Até bolei um bom plano.
          Liguei novamente para meu patrão e pedi-lhe para tirar férias, pois minha esposa acabara de contar-me que estava grávida. Ele caiu como um patinho e me deixou tirar férias. Porém aquela história que havia acabado de inventar me deixou com um pouco de remorso, eu já não sentia o mesmo prazer que senti antes.
          Fui dormir para tentar vencer o remorso, mas isso só me fez piorar, pois sonhei a noite toda comigo matando minha esposa, das mais diversas maneiras. E em todas, sempre algo refletia para os meus olhos a luz do sol. Um pouco antes de eu acordar, sonhei que me via deitado na minha cama, tendo um pesadelo, vi também minha mulher entrar no quarto com um ramalhete de rosas brancas, e depois colocá-lo em cima de meu criado-mudo, enquanto dizia:
          - Logo irão descobrir o que você fez, e os sinais para isso eu mesma darei.
          Quando acordei, assustado e confuso, olhei para meu criado-mudo... Ufa! Não havia sequer uma rosa lá.
          O sol já havia nascido, mas nenhuma idéia que explicasse o sumiço de minha mulher vinha à minha mente. Caminhava por toda a casa pensativo, e quando cheguei ao quintal tive uma grande surpresa: Aquela pequena muda que eu havia plantado no dia anterior se tornara uma bela roseira, e estava repleta de rosas brancas e lindas.
          Aquilo foi no mínimo esquisito, porém eu acreditava que deveria haver uma explicação lógica para aquilo. Fui até a roseira e colhi todas as rosas, antes que elas murchassem e deixassem a roseira com um aspecto desagradável.
          Depois de colher todas fui de volta para dentro de casa. À medida que me aproximava do meu quarto ouvia um som cada vez mais alto, era meu celular tocando. Entrei no quarto e o vi em cima do criado-mudo, quando o peguei vi que quem ligava era a mãe de minha esposa. Desesperei-me. Deixei as rosas em cima do criado-mudo e joguei meu celular contra a parede, quebrando-o em pedaços.
          Fiquei tão nervoso na hora que nem percebi que havia deixado um ramalhete de rosas brancas sobre meu criado-mudo, do mesmo jeito que minha mulher havia feito no meu sonho.
          Meus sogros já estavam procurando por minha esposa, o que era óbvio que mais cedo ou mais tarde iria acontecer, então já era hora de bolar uma história bem convincente para o sumiço dela. Porém isso não era nada fácil.
         As horas iam passando, mas nenhuma idéia. O medo de descobrirem o que eu fiz aumentou quando meus sogros vieram visitar minha esposa. Fingi que não havia ninguém em casa, porém sabia que isto só iria piorar tudo, logo eles voltariam com a polícia, eu pensei. 
          Perto de anoitecer fui até o quintal, porém era melhor eu não ter ido até lá. O que eu vi foi assustador, a roseira estava pingando sangue por onde eu havia tirado as rosas. Na verdade, nem sei se era sangue, era um líquido vermelho, mas não tive coragem de analisá-lo.
          Fiquei tentando encontrar uma lógica para aquilo também, “a raiz da roseira está sugando o sangue de minha esposa”, eu pensava. Mas não tinha muita fé nisso. O lado sobrenatural ia tentando vencer a razão, e uma parte de mim dizia que era o fantasma de minha esposa me atormentando. Porém, eu também não tinha fé nisso.
         Fui deitar-me. Tentar dormir, pensar. E dormi, porém não foi muito agradável. Tive pesadelos durante toda a noite, sempre com minha esposa. Mas dessa vez eu não a matava, ela apenas me perseguia, na forma de um fantasma, que repetia: “O meu sangue te delatará, e por mim fará justiça.”
         Acordei assustado, e lembrei que a roseira estava pingando sangue. Seria aquilo uma obra fantasmagórica? Minha esposa estaria me atormentando do além? Eu estava enlouquecendo. Tentando encontrar respostas, mas ao mesmo tempo, com medo de achá-las.
          Levantei da cama e vi, em cima de meu criado-mudo, uma poça de sangue, no lugar onde antes estavam as rosas brancas que eu havia colhido. Limpei tudo. A perspectiva sobrenatural do caso aflorava, literalmente.
          Corri até o quintal para ver se a roseira ainda estava sangrando, porém, para me deixar mais assustado, ela estava repleta de rosas vermelhas!
          Colhi-as todas. E coloquei-as num vaso, para se, de algum modo, elas viessem a se tornar sangue também, ele seria armazenado no vaso sem causar muita sujeira, e o pus em cima de meu criado-mudo também.
          Estava completamente perdido e sem ânimo algum. Passava-me pela cabeça tirar minha própria vida até.
          Quando, sentado no sofá da sala, ouvi batidas na minha porta, e gritos também:
          - Há alguém em casa? Respondam se houver. É a polícia!
          Meus sogros chamaram a polícia, eu pensei. Desesperei-me. Corri para dentro do banheiro e tranquei-me. Para simular que fui preso lá dentro por alguém, engoli a chave.
          Aquela situação extrema me deu uma idéia, simular um assalto seguindo de um possível seqüestro, possível, pois eu ali trancado não iria saber o que ocorreu à minha esposa. Era perfeito!
          De dentro do banheiro eu ia ouvindo a movimentação dos policiais, embora quase não desse para ouvir o que eles gritavam, ouvi o som da porta sendo arrombada. Comecei a fazer minha parte:
          - Socorro! Alguém me ajude! Socorro!
          Em segundos os policiais me encontraram trancado no banheiro, eram dois os policiais.
          Como a preocupação não deixava que eu me alimentasse, eu parecia realmente fraco, estava abatido de verdade, o que contou muitos pontos para minha história. Contei-lhes que no dia anterior, pouco depois de eu acordar, dois homens encapuzados invadiram minha casa e fizeram eu e minha mulher de reféns, exigindo todo o dinheiro que tivéssemos em casa. E que quando me trancaram no banheiro mandaram que eu não gritasse, pois eles levariam minha mulher com eles, e caso a polícia fosse avisada, eles a matariam.
          Foi brilhante!
          Em poucos minutos meus sogros chegaram à minha casa também e a história foi-lhes repassada. Estava tudo correndo como o planejado, planejado às pressas eu confesso, mas estava dando certo.
          Porém, uma coisa chamou a atenção de um dos policiais, uma coisa que também havia me chamado atenção. As rosas vermelhas no vaso sobre meu criado-mudo.
          - Quem trouxe essas rosas para seu quarto, senhor? – O policial me perguntou.
          - Fui eu, senhor. As colhi ontem de minha roseira e trouxe-as para minha esposa, pouco antes dos assaltantes entrarem. – Eu respondi.
           Fingi ficar emocionado, prendendo um choro engasgado, para tentar tirar a atenção de sobre a roseira. Porém o policial continuou:
          - Mas essas rosas não parecem que foram colhidas ontem, estão muito bem conservadas, e nem mesmo há água no vaso. Sem contar que não vi nenhuma roseira na sua entrada, onde ela fica?
           - No quintal. –Eu respondi. – Venham comigo e eu os mostrarei.
          Levei os dois policiais e meus sogros até o quintal para mostrar-lhes a roseira. E, quando chegamos lá, tive outra estranha surpresa, a roseira já estava novamente repleta de rosas, mas dessa vez rosas brancas. Fiquei tão perplexo que, para mim, elas pareciam até estar sangrando. Se é que não estavam, eu não sei.
          O policial, que havia achado as rosas vermelhas no meu quarto, ficou um pouco desconfiado. Ele olhava fixamente para o terreno onde a roseira havia sido plantada. Não precisava ser um detetive profissional para perceber que a areia ali estava mais fofa que a do resto do quintal, como se o terreno tivesse sido cavado a pouco tempo.
          Ele começou então a andar em direção à roseira. À medida que dela ele se aproximava eu suava cada vez mais frio, vendo seus pés afundarem um pouco na areia fofa. Mas mesmo assim continuei firme no papel que eu havia assumido, de vítima.
          Então, com um tom de acusação, o policial me perguntou:
          - Você não disse que havia colhido as rosas de sua roseira?
          - Eu as colhi sim, senhor. – Eu respondi.
          - Mas as rosas que estão em seu quarto são vermelhas, e essas brancas.
          Fiquei sem palavras. E tudo piorou quando vi o policial pisar com força no chão perto da roseira. Ficou claro para todos que ali estavam que aquele pedaço de terra foi cavado há pouco tempo. Eu estava em um beco sem saída.
          Aquele policial, que até então estava de costas para mim, se virando para ficar de frente para mim, perguntou:
          - Quando o senhor plantou esta roseira?
          No que ele foi se virando, o seu distintivo refletiu para os meus olhos a luz do sol, e fechando-os eu ajoelhei-me e gritei chorando:
          - Eu a matei, eu confesso! Cavem sob esta roseira e vocês a acharão! Mas por favor, levem-me para um lugar onde a luz do sol não possa chegar aos meus olhos, e onde o fantasma de minha mulher não possa me atormentar!

A Caneta do Diabo.

                 Chovia muito naquela noite, e ela estava realmente fria. Fui até a cozinha tentar preparar algo quente para comer, mas tentar mesmo, pois nunca fui um bom cozinheiro.
                 Após acender o fogão, a eletricidade da casa acabou, e olhando pela janela vi que em toda a cidade também. Deve ter sido por causa da chuva, eu pensei. Pra minha sorte eu tinha lanternas, algumas velas e um velho radinho à pilhas.
                 Desisti de fazer algo para comer e me contentei com um chá quente. Peguei minha xícara e fui até a varanda, para a parte coberta, é claro. Passei alguns minutos lá admirando a total escuridão que estava a cidade. Liguei meu radinho e ouvi notícias não muito boas, não havia previsão de quando a eletricidade voltaria, sem falar que apenas minha cidade estava daquele jeito.
               Enquanto admirava o apagão senti um enorme desejo de escrever, para um escritor não tão bem sucedido quanto eu, uma inspiração daquelas não poderia ser desperdiçada. Fui para meu escritório com uma ânsia de escrever tão grande que não lembrava que o computador precisava de eletricidade para ligar.
               O desejo de escrever me consumia, corri atrás de papel e caneta, mas a maldita era digital havia se encarregado de fazer todas as canetas da minha casa sumirem. Porém papel havia aos montes, para poder usar a minha impressora. Maldita era digital.
               Eu daria qualquer coisa por uma caneta naquele momento, aquela inspiração toda poderia nunca mais voltar, sem falar que poderia ser a salvação da minha carreira. Sai então em uma desesperada busca por lápis, giz, carvão, qualquer coisa que escrevesse, mas não encontrava nada.
               Foi então que ouvi uma voz dentro de minha cabeça, “eu posso te ajudar, basta você me convidar para entrar.”
               Estava tão louco para escrever que aquilo não me parecia loucura. Fui até a porta e a abri, olhando para o corredor escuro e vazio eu disse: - Pode entrar, sinta-se em casa.
               Mal acabei de falar e uma estranha e gélida brisa atravessou o meu corpo, me dando sensações estranhas de baixo a cima da minha espinha. Fechei a porta do meu apartamento e quando virei-me para a sala vi o que parecia ser um homem, sentado na minha poltrona.
               Apontei minha lanterna para ele e o vi muito bem acomodado, com um charuto em uma das mãos e um copo, com o que parecia ser whiskey, na outra. O tal homem olhou fixamente para os meus olhos e me mandou sentar, dizia ele que queria ter uma conversa comigo.
            Ao sentar-me fiquei pensando quem seria aquele homem, o que ele queria e como ele entrou aqui. Já estava começando a ficar nervoso,  e sem ele perceber fui tirando o celular do bolso, para tentar pedir socorro.
            O estranho se levantou e falou:
- Não se preocupe, meu jovem, pode guardar o celular, eu não te farei mal. Se fosse fazer, já teria feito. Ah, respondendo suas perguntas, sou aquele que os humanos chamam de Diabo, embora não goste muito desse nome, e você me viu entrar, ou pelo menos sentiu.
            Comecei a ficar mais nervoso, parecia que aquele homem lia meus pensamentos, sem contar que ele deveria ser louco. “Sou o Diabo”?! HAHA! Só sendo mesmo! -Eu pensei.
            –  Meu jovem, eu não sou louco, até aceito sua descrença, mas vou te mostrar quem eu realmente sou, o Diabo. – Disse ele. – Eis aqui o que você tanto desejava, uma caneta.
            Virando-me para ele, nitidamente confuso, eu perguntei:
           – Como você sabe que eu preciso de uma caneta?
           – Esse é o meu trabalho, meu jovem, saber o que os humanos mais desejam e entregar-lhes. Deixarei a caneta aqui com você, caso você a use, voltarei depois para pegar algumas coisinhas. – Respondeu o Diabo.
           Após dizer isso, ele sumiu, e as luzes de toda a cidade voltaram. Eu continuava inspirado, e não me sentia estranho com o que aconteceu. Como a eletricidade voltou, fui até meu escritório e liguei meu computador para começar a escrever, mas senti algo estranho, senti como se a inspiração tivesse acabado. Levantei-me e fui até a cozinha preparar um café. Ao passar por perto da caneta que o “Diabo” havia me dado, senti uma enorme vontade de escrever, era como se ela me desse inspiração. Peguei então uma resma de papel e comecei a escrever com aquela caneta.
         Comecei com um conto sobre um jovem escritor que havia recebido do Diabo uma caneta enfeitiçada, para que ele tivesse sucesso no que escrevesse. Continuei, continuei e não me dei conta de que aquele conto era sobre mim, aquele jovem escritor da história era eu.
          Passei dois dias seguidos escrevendo, mas meu corpo parecia ter envelhecido uns vinte anos ou mais. Apenas continuei a escrever, aquele jovem escritor, o meu personagem, era tão bem sucedido que eu não queria parar de escrever sobre ele. Livros publicados, prêmios, etc. Ele era o melhor escritor de todos os tempos. Porém, quanto mais eu escrevia sobre aquele jovem mais eu percebia o quanto ele era solitário, e mais solitário eu me tornava.
          Não conseguia parar de escrever, continuei, continuei, e cada vez mais meu corpo envelhecia. À mesma taxa que o meu personagem envelhecia na história que eu estava escrevendo.     
          Sem querer eu estava vivendo em um mundo que eu mesmo criei, mas ao mesmo tempo, eu não vivia.
         Quando finalmente consegui parar de escrever, fui tomar um ar, e ao passar pelo corredor do meu apartamento, vi pendurado na parede os prêmios que o meu personagem ganhou na história, e na mesa de centro da minha sala de estar, os livros que ele publicara. Aquele personagem conseguiu tudo que eu sempre quis. Ou teria sido eu mesmo quem conseguiu tais coisas?
        Eu estava ficando com cada vez mais dúvidas, e quanto mais os dias passavam mais eu escrevia. O que começou como um simples conto havia se tornado um livro biográfico. Ou seria auto-biográfico?
        Apenas continuei escrevendo, a medida que escrevia, o meu personagem se aproximava cada vez mais da sua morte. Foi então, que no momento da narrativa final, a morte do jovem escritor da minha história, a tinta da caneta acabou.
        Fiquei possuído pela ira. Gritava pelo Diabo para que ele me trouxesse outra caneta. Minha obra-prima teria que ter um final.
        Já estava ficando sem voz, e nada do Diabo aparecer. Percebi então que a caneta era recarregável, comecei a procurar desesperadamente tinta por toda a minha casa, mas nada de encontrar.
        No ápice do meu desespero, peguei uma faca na cozinha e cortei um dos meus pulsos, enchi a caneta com o meu próprio sangue e continuei a escrever.
        Enquanto escrevia eu ia perdendo sangue, e na medida em que narrava a morte do meu personagem, eu também morria.
        Mas enfim, havia conseguido o final perfeito que tanto desejei em toda a minha carreira de escritor. Porém, aquele final perfeito, também foi o meu.